Muitos dizem que nosso país deveria adotar a pena de morte. Poucos se recordam, entretanto, que tal penalidade já existiu por aqui.
Oficialmente, o último ser humano a padecer pela pena de morte em terra tupiniquim foi um homem chamado Francisco.
Francisco foi o tipo de homem sem rosto conhecido, sem sobrenome, sem direitos, sem proteção ou recursos, enfim, sem eira nem beira. Negro, era escravo de um capitão da guarda nacional (Sr. João Evangelista de Lima) e da esposa do aludido capitão (Sra. Josepha Marta de Lima).
Lutando pela própria liberdade, Francisco teria planejado e executado o assassinato daqueles que o escravizaram.
Conforme previa a legislação da época, Francisco foi enforcado em praça pública.
Pergunto-me, às vezes: até que ponto Francisco poderia ser considerado vítima ou criminoso? Será que a liberdade de Francisco valia mais do que a vida de seus patrões escravocratas? E, finalmente, pergunto-me se vida em escravidão pode ser chamada de vida... Ora, a Lei daquela época autorizava os "patrões" dos escravos a açoitá-los até cinquenta vezes por dia.
Em meio a infindáveis indagações, não sei responder com precisão até que ponto o enforcamento de Francisco foi justo ou injusto... Sei apenas que era a própria Lei que amparava tanto o enforcamento quanto a escravatura.
Francisco não foi o único enforcado do Brasil, mas apenas o derradeiro.
Não existe sistema judicial à prova de falhas, à prova de de erros. Antes de Francisco, muitos outros foram sacrificados pelas mãos do Estado, tendo cometido ou não determinados crimes.
Um cidadão de bem, cujo nome era Mota Coqueiro, foi enforcado em 1824 por um crime cometido por outra pessoa. Tiradentes, herói nacional, foi morto e esquartejado pelas mãos do Estado.
Recentemente, antes da
Constituição de 1988, muita gente foi sumariamente julgada e executada – sem qualquer direito ao contraditório, à ampla defesa e nem mesmo ao devido processo legal - pelas mãos de agentes do Estado nos porões da Ditadura Militar.
Hoje, graças à
Constituição Federal de 1988, absolutamente ninguém pode ter sua vida tirada pelas mãos do Estado. É assim justamente porque
os agentes da Lei também erram. Aliás, como trabalhador da área jurídica, quantas e quantas vezes já não deparei com decisões judiciais injustas, ou que ignoraram a Lei, os fatos e provas de um processo? É claro que tenho feito minha parte, combatendo o que me parece injusto ou ilegal, valendo-me do sistema processual para isso. Mas não é fácil, e não funciona sempre.
Hoje, graças aos fundamentos expressos em nossa
Constituição Federal, ninguém tem o direito de escravizar o outro.
É claro que entendo o sentimento popular quando um crime brutal é exposto pela mídia, quando muitos, indignados, afirmam-se a favor da pena de morte. O mesmo acontece quando uma pessoa é vítima de crime perpetrado pelo outro... Os corações endurecem, em medida diretamente proporcional ao nível de constatação de impunidade em nosso país.
Ah, o combate à impunidade... Poucos perceberam que ele começa com nossas ações cotidianas: não fure filas, pague seus impostos, não faça fofocas, pratique o bem, pague suas contas, jogue lixo no lixo, respeite as pessoas, não agrida fisicamente ninguém, não brigue, não xingue, seja educado, não furte, não mate, não desvie dinheiro público, não aceite nem ofereça propina, seja honesto, cumpra a Lei, não explore seu semelhante, saiba votar, trabalhe e exija que os governantes, legisladores, juízes e servidores públicos trabalhem em benefício da população... Enfim, faça a diferença, não se acomode!
Enquanto cada um de nós tiver telhado de vidro, falhando nas pequenas ações cotidianas, a impunidade e a insegurança jurídica continuarão maculando a paz que as pessoas de bem esperam encontrar na vida em sociedade.
É agindo que se muda o mundo, afinal, é pelas atitudes que fazemos história. Assim, são nossas ações que definem como serão os últimos suspiros dos Franciscos de hoje ou do futuro. Já dizia Machado de Assis:"A história é isto. Todos somos os fios do tecido que a mão do tecelão vai compondo, para servir aos olhos vindouros."
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Thiago S. Galerani
Advogado e Professor de Direito.
Pós-graduado em Direito Eletrônico, Licenciado em Educação na área jurídica.