"Quando vislumbro o céu, imagino que a vida vai além do que pode alcançar os meus olhos"
Nas minhas andanças pelo mundo, São Tomé das Letras fazia parte do meu
itinerário. E foi lá que fiz amizade com um ancião, o Tonico Mulato. Eu,
normalmente, ficava na cidade por três dias mascateando e, nos meus descansos,
ia para a praça central. No primeiro dia, fiquei olhando aquele homem pequeno,
de pele achocolatada, baforando com o cachimbo. Ele sorriu e me cumprimentou. Algum
tempo depois, ele se aproximou, sempre com o cachimbo artesanal fumegando fumo
de corda queimado. Sentou-se ao meu lado disse:
--- O moço
sempre está por essas bandas?
--- Sim –
Respondi com um sorriso -. Sou vendedor
--- Ah... Boa
coisa. Gosta da cidade?
--- Gosto, sim.
Tranquila.
Ficamos ali conversando. Ele me
perguntou o que eu vendia e lhe respondi. Quis saber de onde eu era, se tinha
esposa e filhos. Respondi-lhe todas as perguntas. Embora de aparência simples,
Tonico possuía boa oratória e era inteirado de todos os assuntos. Depois
começou a falar da cidade de São Tomé e do seu povo, das aparições de discos
voadores e dos mistérios das grutas que, segundo lendas, ligam aquela região ao
Peru.
Quando a noite chegou, nos
despedimos e ele me disse:
---- Amanhã, se
o doutor inda estiver na cidade, vou lhe contar um causo ocorrido aqui a mais
de 50 anos.
Fui para o hotel curioso. O que e
porque aquele ser queria me contar um causo? Poderia ser ele mais um lunático
ou, talvez apenas mais um velho carente. No final das contas eu nunca entendi
porque ele me contou aquela estória.
No dia seguinte, por volta das 17
horas, cheguei à praça e lá estava o Tonico cachimbando. Ao ver-me sorriu,
acenou e pediu-me que se sentasse ao seu lado. Meneou a cabeça, pigarreou e me contou
a estória de Ascânio do mesmo jeito que vai nas linhas seguintes: Ascânio era
daqueles sujeitos prosaicos e parecia ter o destino certo, vagando pelas ruas
estreitas da pequena São Tomé das Letras. Gostava de perambular pelos caminhos
difíceis e cobertos com pedras daquele logradouro místico e bucólico erigido
sobre as montanhas de Minas Gerais, envolto nos mistérios apregoados pelos
notívagos apreciadores do haxixe entre outros delírios. Sabia de cor e salteado
o nome de todos os moradores da cidade e conhecia cada pedra colocada nas vias
ou nos prédios. E São Tomé, embora complacente com os apreciadores da
marijuana, jamais foi palco de tragédias ou crimes bárbaros.
Assim, Ascânio, beirando os
sessenta anos, rígido em seus ossos e músculos, orgulhava-se da sua longa
cabeleira, toda cacheada e grisalha. Mas, sua pele já dava sinais de cansaço e começava
a ficar rendada e as pregas se acentuavam mais na sua fronte, pois a barba que
descia das maçãs do rosto escondia o resto dos vincos que o tempo lhe
impregnou. Seus olhos pequeninos e verdes pareciam enxergar muito longe, como
os do gavião que olha a presa do alto. Nas andanças pela ruas de pedras tortuosas,
olhava fixamente cada um e sorria ao ver os turistas reunidos na praça central.
A casa no alto, coberta de telhas coloniais e rodeada de árvores nativas
e frutíferas, Ascânio a recebera de herança dos seus avós - porque pai não
tivera, mas somente a mãe que morrera quando ele tinha apenas seis anos -,
tinha vista privilegiada para o imenso vale onde as cachoeiras pareciam fiapos
de tecido branco saindo das entranhas da terra. No imenso quintal que se estendia
até a beirada da planície, ele cultivava verduras e flores, criava minhocas e
galinhas, com as quais arranjava seu sustento. Tudo isso numa continuação da
existência longa do seus avós. E foi seu avô quem lhe transmitiu toda sabedoria
e hábitos.
Nos finais de tarde, sentado no beiral da cozinha, ele via o céu se abrir
e as montanhas se estenderem numa vastidão quase infinita e eram nesses momentos
que se lembrava do seu avô contando-lhe causos. Eram histórias e estórias sem
fim de luzes cruzando os céus de São Tomé das Letras em noites de outono e
aquelas luzes lhe diziam que entre as estrelas outras vidas se perpetuam, além das
que os nossos olhos humanos podem ver.
No outono de 1962 Ascânio no final de um dia de trabalho, depois de
voltar da cidade com a féria das suas vendas, sentou-se no beiral da cozinha e
olhou o infinito e lembrou-se do seu avô sobre um cavalo, com um longo capote e
sombreado por um chapéu de abas largas. Sorriu com aquela lembrança boa do
ancião altivo e corpulento. Ascânio entendeu que estava na hora de comprar
um chapéu de abas largas e um capote longo. O chapéu, além da utilidade que já
definira no seu espírito, serviria ainda para proteger seus olhos cansados da
luz solar, e o casaco aquecê-lo-ia nos longos dias de inverno daquelas
montanhas. Cogitou comprar um cavalo também. Mas, convenceu-se de que seria uma
besteira. Gostava de caminhar.
No dia seguinte, Ascânio saiu pela manhã com a missão a que propusera no
dia anterior. Ao chegar ao centro da cidade, observou as poucas lojas e apenas
uma delas vendia roupas feitas. O chapéu não foi difícil de encontrar.
Comprou-o numa loja de produtos agrícolas onde adquiria todos os anos um par de
botinas. Mas a procura pelo casaco foi infrutífera. A única loja que vendia
roupas feitas na cidade não tinha casacos longos para vender. O proprietário,
um árabe robusto, tentou empurrar-lhe blusas de lã, jaquetas, japonas:
---- Olha essa
blusa que finura, Ascânio...
---- Ha. Essa
não serve. – afirmava com desalento olhando as ofertas de agasalhos da loja –
Quero um capote comprido e que desça até a canela.
---- Bom, Ascânio – respondeu-lhe, desanimado,
o árabe – Esse tipo de roupa você só vai encontrar em Caxambu.
Ascânio deixou a loja frustrado. Não iria até Caxambu para comprar o seu
capote. Avesso a viagens, era uma figura folclórica quanto ao gosto de não sair
de São Tomé por nada no mundo. São Tomé das Letras era o seu mundo infinito,
com o seu imenso céu e a cadeia de montanhas estendendo-se longinquamente.
Talvez por influência do seu avô, com as suas estórias de
luzes descendo do céu e visitando a cidade, desde muito moço Ascânio afirmava
que um dia iria voar e que quando conseguisse toda a gente da cidade poderia
ver. Essa seria a sua única viagem. Ao longo do tempo as pessoas fizeram
galhofas dele por conta dessa esquisitice e ele dizia:
---- Vocês vão
ver só quando eu voar. Vou para bem longe e vocês todos vão ficar aqui feito
bobos.
Diziam
as más línguas que ele gostava da “erva maldita” e a cultivava no meio das suas
flores e verduras. Essa fofoca lhe rendeu uma operação policial que vasculhou
toda a sua casa e pisoteou todos os seus canteiros. Não encontraram nada.
Disseram-lhe que foi o Presidente João Goulart o culpado. Ficou aborrecido por
muitos dias remoendo as razões que levariam um presidente da república a mandar
invadir sua propriedade em busca de maconha. Mas, Ascânio não fora moldado para
guardar mágoas ou engendrar vinganças contra aqueles que o denunciaram, logo
esqueceu o sucedido e continuou a cuidar da sua vida do mesmo jeito de sempre.
Três vezes por semana - às segundas, quartas e sextas - pela manhã, colhia flores e verduras, ajeitava
tudo em molhos, colocava no carrinho de madeira junto aos ovos caipira e ia
para a praça vender. Por lá ficava o dia todo. Almoçava na pensão da dona
Ricotta, uma senhora bonachona e corpulenta que adorava servir aos viajantes e turistas.
No Final da tarde o carrinho já estava vazio. Sentia-se realizado em continuar
o ofício dos seus avôs.
Cada galinha do seu quintal botava em média três ovos por dia e o segredo
eram as minhocas suculentas que Ascânio lhes dava. Três vezes ao dia a gritaria
das galinhas chamava atenção dos vizinhos: às seis horas da manhã, ao meio-dia
e às seis horas da tarde. Como um relógio exato, elas anunciavam aos berros
novos ovos quentinhos.
---- Seis da
manhã. Acorda para trabalhar que as galinhas do Ascânio já estão botando. -
Afirmava a vizinha do lado para o seu marido, enquanto abria a janela.
---- Já vou,
mulher. Nem adianta mesmo querer ficar na cama com essa banda de música
desafinada de galinhas.
Os
ladrões de galinha da cidade, mesmo sabendo que Ascânio não era um homem de
violências, nunca ousaram invadir seu quintal, pois era fala geral que na sua
casa moravam seres de outro mundo. Ele sabia disso e deixava a imaginação do
povo fluir e, na praça, por muitos anos, contava que, em sonho, tinha sido
escolhido para voar até as estrelas. Descrevia, em detalhes, que havia sido
visitado, enquanto dormia, por seres brilhantes e que passeou com eles numa
nave prateada. Antes de eles irem embora, ensinaram-lhe novas técnicas para o
cultivo das plantas e o cuidado com as galinhas. Foi assim que passou a criar
minhocas, as galinhas passaram a botar três vezes por dia e as folhas das suas
couves adquiriram um tom esverdeado escuro e as folhas o tamanho de meio metro
cada uma. Suas galinhas só morriam de velhice e ele as enterrava no meio das
plantas para servirem de adubo. Mas, os frangos, ele não enjeitava na panela de
ferro com caldo grosso e angu.
Ascânio
não achou o capote para comprar na cidade, mas descobriu um meio de adquiri-lo
sem ter que viajar. Adquiriu seis metros de linho preto, mais seis metros
malha, trinta e seis botões metálicos, foi até a costureira e a convenceu a
fazer a peça como ele queria: comprida, larga, reforçada, com seis botões em
cada manga e doze de cada lado para abotoar como quisesse. Ela lhe pediu o olho
da cara pelo trabalho. Ele nem se importou e, em vinte dias, a peça estava
pronta. Estreou-a numa noite de muita serração e andou pela cidade orgulhoso da
nova indumentária. Ao passar pelas ruas, com o chapéu de abas largas, com o
capote fechado e os botões brilhando no meio da fumaça, as pessoas demoraram a
reconhecê-lo e, quando o fizeram, muitos gritaram:
---- Hei,
Ascânio, você esta parecendo um cavaleiro!
Ele respondeu com uma reverência, sorriu e continuando seu trajeto com a
missão de percorrer todas as ruas da cidade. Assim, passou toda a metade do
outono.
Contudo, numa noite em que o céu estava pipocado de estrelas, o vento
zunindo nas orelhas e o povo todo reunido na praça, pois era festa junina,
fogueira acesa, quentão, pipoca e dança de quadrilha, muita gente começou a
falar que as galinhas do Ascânio estavam gritando sem parar como se fossem
botar ovos àquela hora da noite. No início, não deram importância para o fato
inusitado, mas começaram a desconfiar de que algo estava errado quando mais e
mais gente chegava com a mesma notícia. Enfim, formou-se um grande alvoroço com
muitas especulações. O Sacristão, sujeito abelhudo e fofoqueiro resolveu que
deviam ir até a casa de Ascânio. Um grupo
de homens, mulheres e crianças se formou e rumou na direção da casa dele. N
media que seguiam a estrada na direção da casa de Ascânio constataram um
profundo silêncio. Não havia mais o cacarejar das galinhas ou o canto dos galos
como haviam reportado. Lá chegando, foram surpreendidos por uma visão
extraordinária: a paisagem havia mudado radicalmente. A casa de Ascânio, com
tudo à sua volta, havia desaparecido. No lugar onde sempre estivera habitação
desde os tempos do avô de Ascânio, só havia um descampado de terra vermelha e
mole.
---- Cruz-credo!
– gritou o açougueiro com os olhos arregalados – Onde foi parar a casa do
Ascânio?
Ninguém sabia explicar o que estava acontecendo e as especulações
começaram a fluir até que um grupo de garotos pôs-se a gritar e a apontar para
o céu na direção do vale. A serração daquele lado havia se dissipado e,
pairando no ar, com o capote aberto e o chapéu de abas largas, Ascânio sorria e
acenava para o povo.
---- Jesus! –
Exclamou o sacristão – O padre não vai acreditar, pois ele disse que só os
anjos e os santos podem voar. Homens de carne e osso, só de avião.
Uma
estrela se destacava no céu e o seu brilho se aproximou de Ascânio que deu uma
gargalhada e foi desaparecendo no meio dele, desvanecendo lentamente, diminuindo
de intensidade até se apagar. Quando já não mais se via a figura de Ascânio no
céu, a luz focou o povo no meio do descampado e todos ficaram olhando para cima
pasmados. Repentinamente, uma chuva de ovos despencou do alto. Eram tantos ovos
que homens, mulheres e crianças ficaram ensopados e formou-se uma imensa poça
amarela e pegajosa no chão. As folhas de couve flutuavam no ar descendo
lentamente e as crianças agarravam-nas, e as faziam de barcos para boiar sobre
o lago de gema e clara de ovos. Muitos adultos, ajoelhados, evocavam a Deus e
exclamavam que Ascânio havia se tornado um santo; outros, saíram correndo para
casa, arrastando seus filhos com medo se serem levados pela luz que veio do
céu; enquanto alguns poucos acreditavam que ele havia sido levado por um objeto
voador não identificado.
No
dia seguinte, a imensa poça de clara e gema havia secado e do meio do líquido
endurecido o povo constatou que brotavam flores brancas, amarelas, vermelhas,
azuis, roxas e alaranjadas que se sobressaiam entre as folhas murchas de couve.
Nunca
mais Ascânio foi visto e tudo que se disse e ainda se fala dele e da sua casa
por aquelas bandas da cidade de pedra dizem que é pura especulação. A única
coisa que se sabe de verdade é que ele cumpriu o que dizia: voou para o
infinito de chapéu e vestindo seu capote com trinta e seis botões prateados.
TEXTOS ESPARSOS,
Pedro Paulo – Revisto em 21/06/2022