"Esses pequeninos, cheios de sonhos, sonhos que embalam o mundo, distantes das ambições e da crueldade dos homens e mulheres que ceifam suas vidas".
Essa é a história da pequena Nayra na Faixa de Gaza. Tudo aconteceu como
num filme surreal, cheio de imagens insanas que se perderam no meio da fumaça.
Não sei dizer se o que aconteceu foi justo, se a vida é justa, se tudo é assim
mesmo ou se somos todos filhos da fatalidade, da desgraça e da insanidade
humana.
A história começou com uma menina que acreditava que os seus sonhos
poderiam se realizar. Ela acreditava no amor, na bondade e que as pessoas
nasciam somente para fazer o bem. No seu mundo, ela idealizava, todos os dias,
uma vida sem amargura, como nas velhas estórias de contos de fada.
Nayra tinha uma boneca de pano com os cabelos trançados que a sua mãe lhe
dera quando ela nasceu. A boneca vestia roupas coloridas, como todas as meninas
orientais e atendia pelo nome de Mirela. Ela era sua melhor amiga e dormia
sempre ao seu lado.
Os longos cabelos de Nayra eram o orgulho dos seus pais. Logo que ela saia
do banho, sua mãe se sentava na cama e a chamava para penteá-la. As duas
ficavam conversando longamente enquanto o pente descia e subia, fazendo
carinho. Nayra adorava aquele momento de cumplicidade e, no final, sempre
dizia:
---- Mamãe, eu
te amo!
---- Eu também
te amo muito, minha filha!
O mundo daquela garotinha era feito de ruelas, becos estreitos, moradias
entrelaçadas, casas sem rebocos. Os caminhos do seu mundo mais pareciam
labirintos tortuosos onde as casas se misturavam com os prédios espremidos
entre si. Os esgotos pareciam leite e escorriam a céu aberto em meio a entulhos
de lixo e animais. Mas, Nayra, como todos na Faixa de Gaza, já estava
acostumada a conviver e sobreviver com essa realidade.
Nayra tinha sonhos iguais aos de todas as outras crianças do mundo. A
única diferença é que ela sonhava em demasia. No mundo de fantasias de Nayra,
contudo, existiam monstros. Sempre que eles surgiam no céu, sem nenhum aviso,
assobiando, soltando fumaça e explodindo os prédios e as casas, as pessoas
adultas gritavam: “Israel está atacando”! Aos olhos de Nayra aqueles foguetes
caindo significavam a morte e o céu já não era tão belo como deveria ser.
Ninguém mais ousava ficar nas ruas quando eles chegavam e aas pessoas que ainda
não permaneciam nas suas casas, se encolhiam de medo e se esgueiravam pelos
becos até conseguirem se abrigar. Nayra não conseguia compreender as razões que
levavam aqueles monstros a estar sempre destruindo a paz que reinava no seu paraíso.
Ela, então, se lembrava das estórias de dragões e monstros malvados que lia na
escola e pensava que, algum dia, um herói, com uma espada reluzente, surgiria
para salvar todos do seu mundo, e destruiria, para sempre, aqueles seres alados
e abomináveis.
O coraçãozinho de Nayra sempre se acelerava quando o rugido dos dragões
surgia no céu e ecoava pelas paredes daqueles becos estreitos. Ela corria, sem
olhar para trás. Ofegante, abria a porta da sua casa e entrava esbaforida na
sala. Subia para o seu quarto e da minúscula vidraça olhava o céu riscado de
fumava, cuspindo fogo e soltando pedaços de chumbo que ficavam encravados nas
lajotas ou atravessavam as paredes. Ela mesma tinha vários pedaços guardados
numa caixinha.
Do alto do seu quarto, ela via meninos e adultos com as suas armas
atirando nos dragões. Chegou até a pensar que eles eram pequenos heróis
defendendo o seu mundo contra os desprezíveis seres alados. Ela conhecia bem
aqueles meninos. Todos eles gostavam de soltar pipas, brincavam de carrinhos e
adoravam guloseimas. Uma coisa, porém, os diferenciavam: eles eram seus
pequenos heróis. Mas ela não gostava de vê-los com alguns adultos que lhe
causavam medo. Eram homens grandes, carregando grandes pedaços de ferro que
cuspiam fogo. Ela sofria muito, também, quando descobria que um dos meninos
havia sido morto pelos dragões e se perguntava do porquê tantos meninos morrem
na luta contra os dragões, se eram os adultos que comandavam os seres alados?
Depois de tanto se perguntar ela concluiu que as crianças têm mais coragem para
enfrentar os monstros.
Nayra sempre sonhou com uma linda casa, com um lindo jardim em frente da
varanda onde as borboletas e os pássaros pudessem descansar. Assim, na frente
da sua casa ela pediu ao seu pai que fizesse um cercado onde ela pudesse
plantar flores. Ele relutou, pois não acreditava que naquele lugar insólito e
castigado pudesse vingar um jardim. Mas, diante de tanta insistência e do olhar
suplicante da filha, desmanchou um caixote, capinou em frente da sua casa e
cercou um pequeno pedaço de terra para que a filha pudesse ali construir um
jardim. Agora, Nayra estava feliz. Já possuía um canteiro para transforma-lo em
jardim e, quando as flores desabrochassem, os pássaros e as borboletas
chegariam para enfeitar e completar sua obra de arte.
No dia seguinte, logo que ela chegou da escola, almoçou apressada e saiu
pelo seu mundo procurando mudas de flores para plantar. Mas ninguém tinha muda
de flores para jardim. Ela só encontrava flores de vasos que não cresciam em
campo aberto. Ao longo de vários dias ela tentou, sem sucesso, plantar as
flores de vasos no seu cantinho de terra. Todas morriam e se esturricavam sob o
calor impiedoso, mesmo que ela as regasse várias vezes por dia.
Exausta, Nayra pediu ao pai para ajudá-la a florir seu jardim. Ele apenas
deu de ombros e disse que a terra era muito ruim, precisava ser adubada e ele
não tinha dinheiro para comprar adubo. Ela abaixou a cabeça e foi para o seu
quarto, colou a carinha na pequena vidraça e ficou olhando as pessoas passarem
apressadas, até que começou a chover. Sim, choveu. Estranhamente choveu. A
chuva durou pouco mais de meia hora encharcou seu pequeno jardim. Nos dias que
se seguiram, ao sair de casa para a escola, ela olhava o cercadinho e sonhava
com ele todo colorido.
Os dias se passaram e ela percebeu que o jardim estava ficando verde. O
mato crescia em toda a sua extensão. Ela correu para casa, pegou uma tesoura e
cortou as ervas daninhas que nasceram das sementes trazidas pelo vento. Seus
olhinhos brilhavam diante da possibilidade de ver o seu jardim enfim florido.
Observou que flores diminutas desabrochavam naquele estranho meio. Pequeninas
flores amarelas. Sentiu-se feliz. Mas ela queria ainda mais. Sonhava com uma
grande flor reinando naquele pequeno mundo e saiu novamente a procurar mudas
pelas ruelas, em todas as casas que conhecia. Novamente sentiu-se desamparada,
pois não encontrava a muda possível da sua grande flor.
Numa manhã ela acordou mais cedo do que de costume. Estava ansiosa e
pensando no seu jardim. Olhou-o pela janela e lá estava ele germinando a vida.
Tomou, apressada, sua refeição matinal, desceu a escada sob os protestos da sua
mãe que queria que ela se arrumasse logo para ir para a escola, e foi estar com
o seu jardim. Ajoelhou-se, acariciou as pequeninas plantas selvagens e observou
que havia um chavelho enterrado bem meio dele. O galho era torto e tinha
espinhos pontiagudos em toda a sua extensão. Ela tocou-o com os dedinhos. Um
dos espinhos feriu-a e uma gota do seu sangue agarrou-se naquele chavelho
espinhoso. Ela ficou com medo olhando o pequeno furo na ponta do seu dedo,
imaginando que aquela poderia ser uma planta venenosa e que ela morreria em
pouco tempo. Voltou correndo para dentro
de casa, mas não ousou contar nada para a sua mãe e muito menos para o seu pai,
pois pressentia que algo novo iria acontecer e temia que eles arrancassem o
estranho galho do seu jardim.
Os dias se passaram, e os dragões haviam desaparecido do céu. Numa manhã
de domingo Nayra estava regando seu jardim e observou que brotavam folhas no
chavelho espinhoso, e pequenas bolinhas verdes surgiam em toda a sua extensão.
Ela saiu correndo e chamou seu pai para ver e ele sentenciou que ali estava
crescendo uma roseira e que dela nasceriam lindas rosas. Foi o dia mais feliz
da vida de Nayra. Seu jardim, enfim, logo estaria completo. Ela perguntou quem
poderia ter plantado aquela roseira ali. Ninguém soube responder-lhe. O jardim
de Nayra passou a ser notícia em toda faixa de Gaza e as pessoas que passavam
em frente à sua casa gritavam desejando-lhe sucesso. Uma aura de paz e amor
emanava daquele jardim e espalhava-se pelo mundo de Nayra entranhando-se no
âmago das pessoas que o viam. O jardim de Nayra era assunto em todos os
recantos de Gaza. Todos paravam para ver o pequeno jardim.
Vários galhos cresceram e folhas verdes brotaram do chavelho. Surgiu,
então, o primeiro botão de rosa. Ele veio devagar, num invólucro verde, em meio
aos outros pequenos galhos e folhas que surgiram, e foi se abrindo lentamente
até se tornar uma linda e perfumada rosa branca. Um clima de euforia e paz se
espalhou pelas ruas, entrou pelas casas e em todos os comércios da comunidade.
A rosa de Nayra era alva, esplêndida e perfumada, diziam todos. A rosa, como Nayra,
encantava pelo brilho que emanava sob a luz do sol. Assim, todos se sentiam
responsáveis pela sua proteção e paravam para admirá-la e até pediam, com os
celulares, para serem fotografados ao lado dela e de Nayra.
A imprensa foi até a casa de Nayra entrevistá-la para que ela contasse
toda a história do seu jardim e da linda rosa branca que misteriosamente nele
nasceu. Ela achou muito engraçado sua foto aparecer na primeira página do
jornal, na televisão e ser elogiada na frente dos colegas da sua escola. Seu
pai estava orgulhoso de ter atendido o pedido da filha e construído aquele
pequeno cercado em frente à sua casa
Os meses se passaram sem chuvas, clima seco. E havia tranquilidade em
toda Faixa de Gaza. Pelo menos era o que aparentava. O jardim de Nayra
continuava fulgurante, espalhando paz e amor.
Mas em sete de outubro, um sábado, Nayra acordou assustada com assobios
estridentes. Correu para a janela e viu o céu entrecortado por rastros de
fumaça. Mas o fogo não caia sobre Gaza. Seguia para o outro lado, onde moravam
os homens maus. Colou a carinha na vidraça para ver a rua e o seu jardim. As
pessoas estavam agitadas e corriam em todas as direções. Naquele dia, contudo,
algo novo acontecia: o fogo continuava a seguir na direção contrária. Os gritos
e a correria persistiram durante todo o dia e Nayra foi proibida de sair de
casa.
Veio a noite e o céu começou a pegar fogo. As lâmpadas da rua foram
quebradas e o mundo ficou escuro, iluminado apenas pelos focos das lanternas
dos soldados e pelos olhos brilhantes dos dragões no céu. Só uma coisa deixava Nayra
angustiada: o seu pequeno jardim e a sua linda rosa branca que não tinham como
se defender, não podiam fugir.
Por um instante, na escuridão, se fez silencio. Nayra pensou que toda a
batalha já estava terminada e desceu correndo para socorrer o seu jardim e a
sua rosa. No meio da escuridão, ela pode vislumbrar apenas o que restou do seu
jardim. O fogo do dragão havia caído bem ali onde estava o seu jardim,
despedaçando tudo em volta e soterrando sua linda rosa branca. Ela se ajoelhou
no meio da fumaça que saia dos destroços e remexeu os pedaços de rebocos,
tijolos e madeiras, procurando, desesperada, pela sua linda rosa branca. Suas
mãos se feriram de tanto cavoucar aqueles escombros e só interrompeu o ofício
quando viu uma sombra imensa vindo na sua direção. Ela se levantou
sobressaltada, com alguns cacos nas mãos e correu para a rua iluminadas pelos raios
vindos do céu. Quando parou e olhou para trás, constatou que a luz que vira era
o fogo do dragão que havia caído sobe sua casa. Então, ela chorou. Não havia
mais a sua casa e nem o seu lindo jardim. No brilho do fogo que vinha do céu
pode ver, em meio aos escombros seus amiguinhos sem vida e despedaçados. Eram tantos
que ela não podia contar e não conseguia entender. Veio o vento carregado de fuligem
e ela correio sem saber para onde ia. Apenas correu contra o vento. Por
fim, ela parou ao vislumbrar no céu um clarão, como uma espada reluzente. Acreditou
que, enfim, seu herói, como nas estórias que lia na escola, havia chegado para
salvar a todos do seu mundo e destruir os dragões. Deixou cair os cacos de
construção que segurava e sorriu para aquela luz. Seu sorriso foi o mais largo
e o mais sincero que já havia dado em toda a sua vida. Sorriu para o herói dos
seus sonhos. Numa fração de segundo enxergou um flash na sua frente, como um
raio caindo do céu naquela noite única. Sentiu que algo bateu com força no seu
peito e experimentou uma sensação estranha tomando seu corpo frágil. Pensou que
podia voar e lembrou-se da sua mãe, do seu pai e do seu pequeno jardim. Então,
Nayra fechou os olhos sob o fogo e os escombros que soterraram seus sonhos.
Pedro Paulo de Oliveira.
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