Matéria da Folha de S. Paulo sugere, por
motivos de “segurança”, que gays não sejam afeminados e não se beijem em
espaços públicos para evitar ataques homofóbicos.
Publicado, 13 /02/2013, por Nelci Gomes
Republicado por Marcelo Hailer, no Site
JUSBRASIL
Neste
domingo, o jornal Folha de S.
Paulo publicou uma reportagem
sobre os recentes ataques homofóbicos na região da rua Augusta (SP), local onde
há forte concentração de LGBT. Até aí, tudo bem. Mas a coisa complica com um
box que acompanha a reportagem principal e dá dicas de “estratégias de segurança”,
com recomendações como “- Andar sempre em grupos: ter amigos por perto pode
intimidar agressores; – Evitar lugares abertos. Ir a locais fechados sempre que
possível para aumentar a segurança; – Não dar pinta: alguns trejeitos podem
atrair criminosos; – Evitar andar de mãos dadas e dar beijos em locais
públicos”.
Ou seja, o “guia de segurança” do jornal paulista não passa de
um “volte pro armário” disfarçado de “manual das boas intenções”. Quem anda
minimamente pela Frei Caneca e região sabe que inúmeros casais andam de mãos
dadas, trocam beijos e dão muito pinta. O que é tranquilo e normal. Porém,
quando um periódico de grande circulação dá amplo destaque para “evitar andar
de mãos dadas”, fica a impressão de um desejo de livrar do espaço público o afeto
entre iguais. Por que, ao invés de pedir aos LGBT para dissimularem o que são,
a publicação não centrou fogo na questão de segurança pública, educação sobre
diversidade sexual nas escolas, políticas públicas? Pior, o jornal joga o ônus
da violência homofóbica nas vítimas dos crimes de ódios.
Logo,
se você é gay, afeminada a culpa é sua se for vítima de um ataque homofóbico.
Em entrevista com a Fórum, a socióloga e pesquisadora de estudos
feministas pela PUC, Carla Cristina Garcia, disse que é “absurdo em plena época
de recrudescimento do conservadorismo no Brasil um jornal de grande circulação
publicar um texto desse”. Segundo Garcia, a lógica da matéria é a mesma para as
mulheres vítimas de abuso sexual. “É igualzinho se proteger contra o estupro:
não saia sozinha, não saia com pouca roupa. Já com os gays eles têm que ser
macho, não podem dar pinta”, critica a socióloga.
O
filósofo Giorgio Agamben aponta que a modernidade vive sob o “paradigma do
campo de concentração”, os espaços são organizados como guetos e destinados a
certos tipos e isso não pode ser violado. O espaço público tem orientação
sexual, classe e cor, e são destinados a receber tais corpos: sujeitos
periféricos não podem ir ao shopping, mulheres não podem frequentar campos de
futebol, e as bichas, agora, nem nos guetos podem ficar, devem ficar em locais
fechados, escondidas, assim, quem sabe, a homofobia desaparece… E público LGBT
também. O espaço público como conhecemos é e sempre foi construído a partir da
divisão de gênero (masculino X feminino) e com base em uma única orientação
sexual (heterossexual), o resto são expressões demoníacas que perturbam a via
pública.
O texto do jornal deixa claro (e agora mais do que nunca) um
viés ideológico tipicamente liberal e conservador: sim, você pode ser
homossexual, mas não pode parecer como tal. E, ao fim e ao cabo, as dicas da
publicação são completamente coerentes com seu histórico do publicação que, sob
a premissa da “liberdade de opinião” e de ser um “espaço plural” já publicou
inúmeros textos do pastor Silas Malafaia, declaradamente homofóbico. O que está
em jogo também é uma disputa de sociedade: de um lado branca, heterossexual e
burguesa; do outro, liberta, mestiça e livre das classificações e da sociedade
de controle.
“Num momento em que os movimentos sociais do mundo inteiro pedem
para as pessoas saírem do armário, vem o jornal Folha de São Paulo e manda todo mundo voltar pro
armário?”, indigna-se Garcia. Outro ponto que a professora toca diz respeito ao
espaço público e a quem ele de fato pertence. “A rua pertence ao macho”, afirma
a professora. Esta lógica é comprovada quando pensamos na maneira como as
mulheres são assediadas no espaço público e, agora, constatamos que as bichas
afeminadas também não podem estar nele, pois é melhor evitar “locais abertos”,
privilegiando os espaços fechados. Esconda-se.
Se você apanhou, a culpa é sua, que é viado e ainda por cima dá
pinta na rua. Não pode, tem que ser macho e se adequar ao modelo
heteronormativo. Isso não está escrito, mas é o que se lê nas entrelinhas de
quando o jornal diz “evite dar pinta” e por favor, seja másculo e não nos
envergonhe. Então, o que fazer com as travestis e transexuais? E as meninas que
não seguem os padrões normativos de feminilidade? A pobreza conceitual do texto
é tamanha que, ao invés de propor e ou provocar um debate sobre os vários tipos
de existência corporal e coexistência, pede-se aos sujeitos sexodiversos que
desapareçam do espaço público e o deixem limpinho e homogêneo, assim como
pensavam os eugenistas do século XIX.
Num momento em que até a novela (produto conservador) da Rede
Globo resolveu dar um passo para fora do armário com duas bichas pintosas
(Felix e Niko) e com o beijo entre as personagens que obteve uma forte
aceitação popular, o jornal resolve dar inúmeros passos pra trás. Obviamente
que as “estratégias de segurança” causaram revolta e nas redes uma campanha foi
criada.
Mas, a pergunta que não quer calar: a serviço do que este texto, que
manda bichas não serem afeminadas e não se beijarem nas ruas, foi publicado? A
quem serve retirar o público LGBT do espaço público?
As imagens foram copiadas da matéria.
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