Terei eu o direito de morrer? Não penso que se possa conceber a negação deste direito a quem quer que seja. Mas, apesar de parecer óbvio o direito de morte, o tema é cercado de tal forma que o direito de morrer não é algo tão pacífico como parece. Quero dizer, se tenho o direito de morrer, tenho, pois, o direito de providenciar a minha própria morte? Não, não o tenho. Ainda que eu não seja punido pela providência, não o tenho, pelo menos segundo a legislação brasileira.
Certos princípios e institutos são considerados
fundamentais à possibilidade de existência digna do indivíduo na nossa
sociedade. São os chamados direitos da personalidade. São direitos da ordem
privada. Tais direitos estão previstos no artigo 5º da Constituição Federal e nos artigos 11 a 21 do Código Civil.
Sobre eu poder dar cabo da minha vida? Algo está
previsto? Pode parecer que não, mas, sim, absurdamente, há previsão legal a
respeito do assunto, e a previsão é em detrimento da minha liberdade de
decidir. Código Civil, Capítulo II, Artigo 13: “Salvo
por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando
importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons
costumes.”
Isso, de contrariar os “bons costumes”, é a margem
de manobra entregue à moralidade dominante. Conforme o poder estabelecido, ao
talante da formatação ideológica do juiz, os “bons costumes” serão mais ou
menos vinculados à mentalidade conservadora. Já a “disposição do próprio corpo”
é uma expressão mais objetivável. Portando, pelo menos considerando essa
disposição do Código Civil, eu dar cabo da vida do meu
corpo importa em diminuir permanentemente a minha integridade física.
A vedação é civil e não há uma pena prevista para o
caso de eu subtrair de mim a minha vida. O Código Penal silencia sobre o tema. O
suicídio (mesmo na modalidade tentativa) não é um ilícito penal. Contudo, se eu
quiser morrer, tenho que me virar por própria conta. Não posso pedir auxílio.
Se alguém me ajudar, será alcançado pelo artigo 122 do Código Penal. É crime o induzimento, a
instigação ou a assistência ao suicídio. É ilícito acoroçoar a vontade,
implantá-la ou colaborar com ela materialmente.
Mas, ora, pode ser dito: se eu desejar morrer,
basta eu dar jeito nisso e tudo estará resolvido. Mais ou menos. Fazer-se
morrer, em havendo deliberação resolvida de foro íntimo, exige condição física
para tanto e um saber fazer, sobretudo se eu desejar fazer-me morrer de forma
digna, agasalhada por meios que não me façam padecer fisicamente ou moralmente.
Meu cachorro envelheceu e foi tomado por dores na
coluna lombar e nas pernas traseiras. Já não conseguia levantar-se nem para
comer. Fui à veterinária pedir socorro em nome da dignidade canina. Ela o fez
morrer. Alguém dirá que não somos cães, somos um animal superior. Na ordem da
natureza, isso é irrelevante. Mas, como somos cultura e decidimos culturalmente
que somos superiores, então, de fato, o somos. Mas, estranhamente, não obstante
a superioridade em que nos declaramos, não nos emprestamos uma condição digna
de executar a própria morte.
A humanidade inventou valores e os insculpiu em
normas. As normas formam um patamar de vida com decência. O Direito declara
certas garantias, dignificando a condição de existência humana. Aliás, o
Direito já declara e exige até mesmo o tratamento respeitoso aos demais animais
que coabitam o nosso mundo. Os valores mais elevados, nós os temos insculpidos
na Carta Constitucional. O inciso III do artigo 5º da Constituição prevê que “ninguém será
submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.
Não obstante a vida ser o valor sem o qual os
demais inexistem, muitas vezes as nossas circunstâncias concretas nos deterioram
o viver. Em certas situações, nossa vida torna-se degradada. Defendo que se a
vida mesma me degrada a existência, eu posso dar fim nela, dando fim a mim. E
advogo que tal deve ser feito com a ajuda do saber adequado, que o é o saber
médico. Não há qualquer sentido jurídico considerar a eutanásia um homicídio.
Homicídio é matar alguém contra a sua vontade. Eutanásia é acudir um humano em
seu pedido de morrer com humanidade.
Doutor e Mestre em Direito pela UFSC. Especialista
em Administração de Empresas e em Economia. Professor da Unisul. Advogado,
Psicólogo e Jornalista.
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