Durante quatro dias de entrevista em Tangerang, em
2005, ele se abriu para mim: "Sou traficante, traficante e traficante, só
traficante".
Demonstrou até uma ponta de orgulho: "Nunca
tive um emprego diferente na vida". Contou que tomou "todo tipo de
droga que existe".
Naquela hora estava desafiante, parecia acreditar
que conseguiria reverter a sentença de morte.
Marco sabia as regras do país quando foi preso no aeroporto
da capital Jakarta, em 2003, com 13,4 quilos de cocaína escondidos dentro dos
tubos de sua asa delta. Ele morou na ilha indonésia de Bali por 15 anos, falava
bem a língua bahasa e sentiu que a parada seria dura.
Tanto sabia que fugiu do flagrante. Mas acabou
recapturado 15 dias depois, quando tentava escapar para o Timor do Leste. Foi
processado, condenado, se disse arrependido. Pediu clemência através de Lula,
Dilma, Anistia Internacional e até do papa Francisco, sem sucesso. O
fuzilamento como punição para crimes é apoiado por quase 70% do povo de lá.
Na mídia brasileira, Marco foi alternadamente
apresentado como "um garoto carioca" (apesar dos 42 anos no momento
da prisão), ou "instrutor de asa delta", neste caso um hobby
transformado na profissão que ele nunca exerceu.
Para Rodrigo Muxfeldt Gularte, 42, o outro
brasileiro condenado por tráfico, que espera fuzilamento para fevereiro,
companheiro de cela dele em Tangerang, "Marco teve uma vida que merece ser
filmada".
Rodrigo até ofereceu um roteiro sobre o amigo à
cineasta curitibana Laurinha Dalcanale, exaltando: "Ele fez coisas
extraordinárias, incríveis."
O repórter pediu um exemplo: "Viajou pelo
mundo todo, teve um monte de mulheres, foi nos lugares mais finos, comeu nos
melhores restaurantes, tudo só no glamour, nunca usou uma arma, o cara é
demais."
Para amigos em liberdade que trabalharam para
soltá-lo, o que aconteceu teria sido "apenas um erro" do qual ele
estaria arrependido.
Na versão mais nobre, seria a tentativa desesperada
de obter dinheiro para pagar uma conta de hospital pendurada em Cingapura -
Marco estaria preocupado em não deixar o nome sujo naquele país. A conta
derivou de uma longa temporada no hospital depois de um acidente de asa delta.
Ter sobrevivido deu a ele, segundo os amigos, um incrível sentimento de
invulnerabilidade.
Ele jamais se livrou das sequelas. Cheio de pinos
nas pernas, andava com dificuldade, o que não o impediu de fugir
espetacularmente no aeroporto quando os policiais descobriram cocaína em sua
asa delta.
Arriscou tudo ali. Um alerta de bomba reforçara a
vigilância no aeroporto. Ele chegou a pensar em largar no aeroporto a cocaína
que transportava e ir embora, mas decidiu correr o risco.
Com sua ficha corrida, a campanha pela sua
liberdade nunca decolou das redes sociais. A mãe dele, dona Carolina, conseguiu
o apoio inicial de Fernando Gabeira, na Câmara Federal, com voto contra de Jair
Bolsonaro.
O Itamaraty e a presidência se mexeram cada vez que
alguma câmera de TV foi ligada, mesmo sabendo da inutilidade do esforço.
Mesmo aparentemente confiante, ele deixava
transparecer que tudo seria inútil, porque falava sempre no passado, em tom
resignado: "Não posso me queixar da vida que levei".
Marco me contou que começou no tráfico ainda na
adolescência, diretamente com os cartéis colombianos, levando coca de Medellín
para o Rio de Janeiro. Adulto, era um dos capos de Bali, onde conquistou fama
de um sujeito carismático e bem humorado.
A paradisíaca Bali é um dos principais mercados de
cocaína do mundo graças a turistas ocidentais ricos que vão lá em busca de uma
vida hedonista: praias deslumbrantes, droga fácil, farta - e cara.
O quilo da coca nos países produtores, como Peru e
Bolívia, custa 1 000 dólares. No Brasil, cerca de 5 000. Em Bali, a mesma coca
é negociada a preços que variam entre 20 000 e 90 000 dólares, dependendo da
oferta. Numa temporada de escassez, por conta da prisão de vários traficantes,
o quilo chegou a 300 000 dólares.
Por ser um dos destinos prediletos de surfistas e
praticantes de asa delta, e pela possibilidade de lucros fabulosos, Bali atrai
traficantes como Marco. Eles se passam por pessoas em busca de grandes ondas, e
costumam carregar o contrabando no interior das pranchas de surf e das asas
deltas. Archer foi pego assim. Tinha à mão, sempre que desembarcava nos
aeroportos, um álbum de fotos que o mostrava voando, o que de fato fazia.
O homem preso por narcotráfico passou a maior parte
da entrevista comigo chapado. O consumo de drogas em Tangerang era uma
banalidade.
Pirado, Marco fazia planos mirabolantes - como
encomendar de um amigo carioca uma nova asa, para quando saísse da cadeia.
Nos momentos de consciência, mostrava que estava
focado na grande batalha: "Vou fazer de tudo para sair vivo desta"
.
Marco era um traficante tarimbado: "Nunca fiz
nada na vida, exceto viver do tráfico." Gabava-se de não ter servido ao
Exército, nem pagar imposto de renda. Nunca teve talão de cheques e ironizava
da única vez numa urna: "Minha mãe me pediu para votar no Fernando Collor".
A cocaína que ele levava na asa tinha sido comprada
em Iquitos, no Peru, por 8 mil dólares o quilo, bancada por um traficante
norte-americano, com quem dividiria os lucros se a operação tivesse dado certo:
a cotação da época da mercadoria em Bali era de 3,5 milhões de dólares.
Marco me contou, às gargalhadas, sua "épica
jornada" com a asa cheia de drogas pelos rios da Amazônia, misturado com
inocentes turistas americanos. "Nenhum suspeitou". Enfim chegou a
Manaus, de onde embarcou para Jakarta: "Sair do Brasil foi moleza, nossa
fiscalização era uma piada".
Na chegada, com certeza ele viu no aeroporto
indonésio um enorme cartaz avisando: "Hukuman berta bagi pembana
narkotik'', a política nacional de punir severamente o narcotráfico.
"Ora, em todo lugar do mundo existem leis para
serem quebradas", me disse, mostrando sua peculiar maneira de ver as
coisas:"Se eu fosse respeitar leis nunca teria vivido o que vivi"
.
Ele desafiou o repórter:" Você não faria a
mesma coisa pelos 3,5 milhões de dólares "?
Para ele, o dinheiro valia o risco:" A venda
em Bali iria me deixar bem de vida para sempre "- na ocasião, ele não
falou em contas hospitalares penduradas.
Marco parecia exagerar no número de vezes que
cruzou fronteiras pelo mundo como mula de drogas:" Fiz mais de mil gols
". Com o dinheiro fácil manteve apartamentos em Bali, Hawai e Holanda,
sempre abertos aos amigos:" Nunca me perguntaram de onde vinha o dinheiro
pras nossas baladas ".
Marco guardava na cadeia uma pasta preta com fotos
de lindas mulheres, carrões e dos apartamentos luxuosos, que seriam aqueles
onde ele supostamente teria vivido no auge da carreira de traficante.
Num de seus giros pelo mundo ele fez um cursinho de
chef na Suíça, o que foi de utilidade em Tangerang. Às vezes, cozinhava para o
comandante da cadeia, em troca de regalias.
Eu o vi servindo salmão, arroz à piemontesa e leite
achocolatado com castanhas para sobremesa. O fornecedor dos alimentos era
Dênis, um ex-preso tornado amigão, que trazia os suprimentos fresquinhos do
supermercado Hypermart.
Marco queria contar como era esta vida"
fantástica "e se preparou para botar um diário na internet. Queria
contratar um videomaker para acompanhar seus dias. Negociava exclusividade na
cobertura jornalística, queria escrever um livro com sua experiência - o que
mais tarde aconteceu, pela pena de um jornalista de São Paulo. Um amigo prepara
um documentário em vídeo para eternizá-lo.
Foi um dos personagens de destaque de um bestseller
da jornalista australiana Kathryn Bonella sobre a vida glamurosa dos
traficantes em Bali - orgias, modelos ávidas por festas e drogas depois de
sessões de fotos, mansões cinematográficas.
Diplomatas se mexeram nos bastidores para tentar
comprar uma saída honrosa para Marco. Usaram desde a ajuda brasileira às
vítimas do tsunami até oferta de incremento no comércio, sem sucesso. Os
indonésios fecharam o balcão de negócios.
O assessor internacional de Dilma, Marco Aurélio
Garcia, disse que o fuzilamento deixa"uma sombra"nas relações
bilaterais, mas na lateral deles o pessoal não tá nem aí.
A mãe dele, dona Carolina, funcionária pública
estadual no Rio, se empenhou enquanto deu para livrar o 'garotão' da enrascada,
até morrer de câncer, em 2010.
As visitas dela em Tangerang eram uma festa para o
staff da prisão, pra quem dava dinheiro e presentes, na tentativa de aliviar a
barra para o filhão.
Com este empurrão da mamãe Marco reinou em
Tangerang, nos primeiros anos - até ser transferido para outras cadeias, à
espera da execução.
Eu o vi sendo atendido por presos pobres que lhe
serviam de garçons, pedicures, faxineiros. Sua cela tinha TV, vídeo, som,
ventilador, bonsais e, melhor ainda, portas abertas para um jardim onde ele
mantinha peixes num laguinho. Quando ia lá, dona Carola dormia na cama do
filho.
Marco bebia cerveja geladinha fornecida por chefões
locais que estavam noutro pavilhão. Namorava uma bonita presa conhecida por
Dragão de Komodo. Como ela vinha da ala feminina, os dois usavam a sala do
comandante para se encontrar.
A malandragem carioca ajudou enquanto ele teve
dinheiro. Ele fazia sua parte esbanjando bom humor. Por todos os relatos de
diplomatas, familiares e jornalistas que o viram na cadeia de tempos em tempos,
Marco, apelidado Curumim em Ipanema, sempre se mostrou para cima. E mantinha a
forma malhando muito.
Para ele, a balada era permanente. Nos últimos anos
teve várias mordomias, como celular e até acesso à internet, onde postou
algumas cenas.
Um clip dele circulou nos últimos dias - sempre
sereno, dizendo-se arrependido, pedindo a segunda chance:" Acho que não
mereço ser fuzilado ".
Marco chegou ao último dia de vida com boa
aparência, pelo menos conforme as imagens exibidas no Jornal Hoje, da Globo.
Mas tinha perdido quase todos os dentes em sua temporada na prisão, como
relatou a jornalista e escritora australiana. No Facebook, ela disse guardar
boas recordações de Archer, e criticou a" barbárie "do fuzilamento.
Numa gravação por telefone, ele ainda dava
conselhos aos mais jovens, avisando que drogas só podem levar à morte ou à
prisão.
Sua voz estava firme, parecia esperar um milagre,
mesmo faltando apenas 120 minutos pra enfrentar o pelotão de fuzilamento - a se
confirmar, deixou esta vida com o bom humor intacto, resignado.
Sabe-se que ele pediu uma garrafa de uísque Chivas
Regal na última refeição e que uma tia teria lhe levado um pote de
doce-de-leite.
O arrependimento manifestado nas últimas horas pode
ser o reflexo de 11 anos encarcerado. Afinal, as pessoas mudam. Ou pode ter
sido encenação. Só ele poderia responder.
Para mim, o homem só disse que estava arrependido
de uma única coisa: de ter embalado mal a droga, permitindo a descoberta pela
polícia no aeroporto.
" Tava tudo pronto pra ser a viagem da minha
vida ", começou, ao relatar seu infortúnio.
Foi assim: no desembarque em Jakarta, meteu o
equipamento no raio x. A asa dele tinha cinco tubos, três de alumínio e dois de
carbono. Este é mais rijo e impermeável aos raios:" Meu mundo caiu por
causa de um guardinha desgraçado ", reclamou.
"O cara perguntou 'por que a foto do tubo saía
preta'? Eu respondi que era da natureza do carbono. Aí ele puxou um canivete,
bateu no alumínio, fez tim tim, bateu no carbono, fez tom tom".
O som revelou que o tubo estava carregado,
encerrando a bem-sucedida carreira de 25 anos no narcotráfico.
Marco ainda conseguiu dar um drible nos guardas.
Enquanto eles buscavam as ferramentas, ele se esgueirou para fora do aeroporto,
pegou um prosaico táxi e sumiu. Depois de 15 dias pulando de ilha em ilha no
arquipélago indonésio passou sua última noite em liberdade num barraco de
pescador, em Lombok, a poucas braçadas de mar da liberdade.
Acordou cercado por vários policiais, de armas
apontadas. Suplicou em bahasa que tivessem misericórdia dele.
No sábado, enfrentou pela última vez a mesma
polícia, mas desta vez o pessoal estava cumprindo ordens de atirar para matar.
Foi o fim do Curumim.
JUSBRASIL
Folha Política
www.folhapolitica.org
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