sexta-feira, 1 de novembro de 2013

RIO DE JANEIRO – A CIDADE E O CRIME - UMA TRAGÉDIA SEM FIM.




O MENINO KAIO

Kaio é um menino brasileiro, carioca da gema - como se diz no Rio de Janeiro para aqueles que nascem na “Cidade Maravilhosa”. Ele tem apenas 8 anos e uma paixão: o futebol. Por isso seu pai o inscreveu para treinar na escolinha do time do Bangu. Alegre e proativo, Kaio logo se destaca entre os atletas mirins do clube. No entanto, seu time do coração é o Vasco da Gama, o mesmo para o qual seu pai torce.

A mãe de Kaio resolveu morar com a mãe e o padrasto até terminar a reforma da própria casa. Ela e o marido trabalham e o Kaio poderia ser cuidado pelos avós de segunda a sexta-feira. Assim, ele estuda pela manhã, almoça e frequenta as aulas de futebol nas terças e quintas-feiras. Juamir é o seu avô e é quem o veste como atleta. Faz questão de amarrar suas chuteiras. Rosane, sua avó é quem o leva para o treino e fica esperando-o até o final.

Bangu é um bairro da periferia do Rio de Janeiro, que mistura o velho e o contemporâneo, formado por casas antigas, edifícios médios e baixos, condomínios populares e construções que abrigam uma população que vai até a classe média alta. Possui amplas avenidas, ruas estreitas e até becos. Nos seus tempos de glória abrigou o famoso Cassino Bangu e o Cine Arte Bangu, prédios que ainda existem até hoje, como referências culturais. A Igreja de Santa Cecília é, também, um dos destaques do bairro, com a sua pintura ferrugem e suas torres pontiagudas. No entanto, os orgulhos parecem ser a antiga Fábrica Bangu que hoje abriga o Bangu Shopping e o Bangu Atlético Clube, onde o pequeno Kaio treina e sonha ser um atleta profissional e famoso. Mas, Bangu também é conhecido nacionalmente pelo seu complexo penitenciário.

Quinta-feira, dia 31 de outubro de 2013. Kaio acorda com a voz da sua vó que o chama:

---- Levanta meu filho, que a Kombi logo logo encosta lá na esquina.

Kaio se espreguiça, abraça o travesseiro, curtindo o melhor momento da cama, que é aquele em que acordamos pela manhã. Olha para Dona Rosane e lhe diz:

---- Já vou levantar vó.

Ela sorri. Sabe que o neto vai permanecer deitado por mais uns cinco minutos. Olha-o com carinho e vai para a cozinha arrumar a mesa com o seu café da manhã. Juamir acabou de chegar trazendo pães fresquinhos e os esparrama sobre uma grande bandeja. O aroma adocicado de pão francês toma conta da copa. Ela olha o marido e diz:

---- Logo, logo minha filha e o Kaio vão voltar pra casa deles.

Juamir dá uma gostosa risada.

---- Sim, mulher. Toda semana você fala isso. Mas, eles sempre virão aqui. Depois, nós iremos lá na casa deles, também. É sempre assim.

Kaio olha para a janela e sente a luz do sol. Será mais um dia na escola e na expectativa de ir para o clube treinar futebol. Imagina-se adulto, jogando pelo Vasco da Gama, no Maracanã lotado, numa tarde de domingo. Ele é o centroavante e joga contra o fluminense. O jogo está empatado e o Vasco precisa da vitória para se classificar. Faltando um minuto para o término do jogo, na altura da grande área, ele recebe um passe de bola alta, mata-a no peito, dribla a zaga adversária, encara o goleiro e chuta no canto esquerdo, marcando o golaço. O Maracanã lotado vibra e grita seu nome. Ele é o herói da tarde. O gol da classificação saiu dos sues pés. O juiz apita o final do jogo e os atletas fazem uma volta olímpica liderados por ele. Na saída do gramado, todos os repórteres querem ouvi-lo e seus pais e seus avós o vêem ao vivo através da televisão. Seus devaneios são interrompidos pela voz da avó que o chama para arrumar, tomar café e ir para a escola.


Kaio recebeu na semana anterior um par de chuteiras novas com o nome do Neymar. Foi seu presente de Natal antecipado. Vai estreá-la no jogo final do campeonato que está participando e os seu time será, com certeza, campeão.

Enquanto toma o café, seu avô lhe diz para não se esquecer de que a escola do estado é tão importante quanto a escola de futebol. Kaio o escuta com atenção. No entanto, gosta mais da escola de futebol. É um sentimento que não consegue mudar. Come pão com manteiga, toma café com leite e se levanta apressado. Já está quase na hora da perua escolar passar. Coloca a mochila nas costas e segue com o seu avô até o ponto. A perua chega e Juamir despede-se do neto. A Kombi desaparece na esquina e Juamir sente um aperto no coração. É um avô muito novo, com apenas 42 anos e tem aquele menino como seu filho, parte inseparável da sua vida, um amor em continuação, sem medida. Sonha, com ele, o sonho de atleta, de jogador de futebol e sabe, sente que isso pode ser possível.

Na sala de aula, Kaio copia as matérias e pensa nos treinos no Clube. Durante o recreio, ele junta os colegas em torno de si e lhes fala dos treinos e dos jogos do campeonato que está participando e que o seu time vai ser campeão.

Depois da aula, já em casa, ele almoça avidamente a comida feita por Dona Rosane.

---- Está uma delícia, vó. Sua comida é a melhor do mundo.

Dona Rosane sorri satisfeita. Ela é a típica dona casa brasileira, que tem na cozinha seu ateliê de arte. É na cozinha que Rosane prepara o arroz, o feijão, o frango, o macarrão e as verduras com habilidades inigualáveis.

---- É preciso paciência para se cozinhar bem. – Diz ela quando reclamam que a comida está demorando a sair.


Assim que termina a refeição, Kaio pede autorização para usar o computador e vai para o seu quarto brincar com o seu jogos preferido: futebol. Quando o sono o pega, ele tira um cochilo até o momento quem que Juamir o acorda e lhe diz que está na hora de ir para o clube. Ele se levanta correndo, veste o uniforme vermelho e Juamir ajuda-o a amarrar as chuteiras. Metido no uniforme, Kaio se sente um gigante. Na sala sua avó o espera. É ela quem vai leva-lo até o clube.

No caminho para o treino, eles passam pelo Fórum de Bangu. Rosane olha o prédio ladeado por grades e pensa que lá dentro tem juízes que decidem sobre a liberdade e a prisão. Mas, afasta os pensamentos e logo chegam ao clube. Ela entra com o neto, vai até o bebedouro, sacia a sede e se senta um tanto cansada.

Kaio, inspirado, recebe as instruções do professor e mostra tudo que sabe de melhor do futebol em campo. Mostra habilidade, grita com os colegas, pede passe. O professor grita para que eles mantenham as posições e chutem com mais presteza. Ele escuta e assimila os ensinamentos. O técnico, Luiz Manoel, o olha com orgulho. Sabe que ele será um futuro atleta profissional de destaque.


OS CRIMINOSOS


Alexandre é um bandido conhecido pela alcunha de Piolho. Está preso no Presídio de Bangu desde 2012 apontado como chefe do tráfico do Morro do Dezoito, uma das favelas do Rio de Janeiro. Vanderlan é outro fora da lei que atende pelo apelido de Chocolate e está preso, também, no Presídio de Bangu, e é apontado como chefe do tráfico em Belfort Roxo, Baixada Fluminense. O que eles têm em comum? Pesa sobre eles acusações de associação para o tráfico, homicídios, formação de quadrilha e roubo.

Quinta-feira, aproximadamente 14 horas. Piolho e Chocolate deixam o presídio na direção do Fórum. Ambos vão prestar depoimento em uma audiência marcada pelo Tribunal de Justiça. Esta audiência não foi publicada por questões de segurança. Escoltados por agentes penitenciários e policiais fortemente armados, os dois bandidos são conduzidos para o interior do Fórum. A sala de audiências está fechada e eles são colocados em cadeiras para aguardar. Estão algemados e silenciosos. Seus olhos parecem fitar o nada. Chocolate está ansioso. Falará, na audiência, como testemunha.

A Rua 12 de Fevereiro, onde fica o Fórum está com o seu trânsito agitado nesta tarde. O sinal fica vermelho. Dois carros invadem a rua e fecham-na. Quatro homens encapuçados, armados com fuzis e pistolas automáticas saem dos carros e gritam para que ninguém movimente os veículos ou saia dos seus interiores. Enquanto isso, mais oito homens fortemente armados invadem o fórum. Uma viatura da Polícia Militar surge no sentido do Fórum e os homens que fecham a rua começam a atirar na sua direção. Os policiais descem, se protegem e revidam. Os pedestres correm apavorados; os carros são alvejados; e os seus ocupantes se abaixam protegendo-se da saraivada de balas.

No interior do Fórum, os oito bandidos encapuçados entram atirando e gritando que querem levar O piolho e o Chocolate. Eles são recebidos à bala pelos seguranças do Fórum e por alguns policiais que correm desordenados, pegos de surpresa. Sem conseguirem resgatar seus alvos, os bandidos se escondem atrás das pilastras e das paredes do Fórum. Continuam a atirar desvairadamente.

Rosane deixou o Clube faz algum tempo. Está tentando atravessar a Rua 12 de Fevereiro segurando Kaio pela mão. De repente ela percebe uma movimentação estranha e pessoas gritando no meio do trânsito. Sente um calafrio cortar sua espinha. Seu coração dispara. Aperta a mão do neto que levanta a cabeça e a olha sem entender o que está acontecendo. Tudo, num instante, vira um pandemônio, as pessoas correndo, chorando, se escondendo. Os estampidos se sucedem num crescendo sem fim. Ela sente um silvo passar pela sua orelha. Passa a mão e sente que o estilhaço de algo a feriu. Ela se vira para Kaio que a puxa para baixo.

---- Vamos correr e nos esconder. – Diz ela.


Kaio solta a mão da avó e só então ela percebe que ele foi alvejado por um tiro. Ela se ajoelha e o ampara nos braços. Seu instinto de mãe e avó lhe diz que a vida e o sonho de Kaio terminaram. Ela tenta escutar seu coração e sente sua respiração. Mas o pequeno corpo está inerte.


CONCLUSÃO

Juamir declarou que “mataram o sonho de Kaio”. É verdade. Uma “bala perdida”, se é que existem balas perdidas em situações de conflito armado, tal como o que ocorreu em Bangu, tirou a vida de um garoto que sonhava muito e tinha razão para sonhar, pois seus sonhos tinham asas e sentido. Seu técnico investia nele, acreditava nele e, ao vê-lo sem vida, desfaleceu. “Amarrei a chuteira dele e dei um beijo nele”, desabafou Juamir na porta do Instituto Médico Legal.

No conflito morreram um policial e uma mulher. Outra vítima foi internada e passou por uma cirurgia. Os bandidos não conseguiram resgatar os chefes do tráfico do Morro do Dezoito e de Belfort Roxo. Fica, no entanto, uma pergunta: até quando viveremos essa guerrilha urbana no Brasil? Até quando a população simples e inocente continuará morrendo, vítima dos bandidos e da inoperância do estado?

Quando, numa guerra, começam a morrer inocentes em demasia, é por que está na hora de um dos lados do conflito mudar suas estratégias.

Texto de Pedro Paulo de Oliveira

Imagem: Jadson Marques

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