Ontem foi domingo e me droguei muito. Comecei por
volta das 13h e só fui parar depois das 22h. Éramos uns poucos amigos e amigas,
casais amigos, e quase todos se drogaram também. Uns mais e outros menos.
Petiscamos durante o dia e só no final da festa é que resolvemos comer algo
mais consistente. Sorrimos muito e também tivemos momentos de conversa séria. Eu,
por exemplo, quando me drogo, tenho momentos de euforia e de silêncio. Passo
horas ouvindo as pessoas e outras horas com o olhar perdido. Depois, peço
desculpas e retorno à euforia e boas risadas.
Um desses meus amigos gosta muito de misturar e
reclama que não está sentindo nada, embora todos os demais percebam seu visível
estado de euforia. Outro amigo tem sempre um copo de água ao lado, mas poucas
vezes bebe a água. Outro tem o ciclo bem rápido e em poucas horas passa da
sobriedade para a euforia, silêncio e sono; depois, quando os demais ainda
estão na fase da euforia, ele já está completamente recuperado e começa do
zero. Outro não come nada e justifica que se comer não consegue continuar se
drogando e sente muito sono. Outro, ao contrário, tem sempre um prato de
petiscos ao lado e justifica que não consegue se drogar sem comer. Outro,
talvez só eu saiba disso, provoca vômito cada vez que vai ao sanitário para
continuar se drogando e parecer sóbrio.
Drogas são drogas e ponto final. Todas elas alteram
nossa percepção sensorial e, em consequência, a forma de ver o mundo. Esta
relação das drogas com cada pessoa é única. Drogas é uma coisa e o efeito delas
é algo absolutamente pessoal. Busca-se, portanto, algo entre a pessoa e a
droga. Este algo é único e individual e reflete exatamente a história da pessoa
com os efeitos da droga. Então, como cada um tem sua própria história, a
relação dessa história com a droga também será uma história própria. Por causa
disso, uns usam drogas apenas uma vez e não gostam, outros conseguem usar por
muitos anos e não se tornam dependentes e outros não conseguem mais parar de
usar depois da primeira experiência, tornando-se um usuário dependente.
Independentemente do caráter de legal ou ilegal,
lícita ou ilícita, todas as drogas são drogas e estabelecem as mesmas relações
com o usuário, pois não sabem se são permitidas ou não. Assim, o uso do tabaco
pode causar um profundo bem estar ao fumante, embora possa causar inúmeros
tipos de câncer. Da mesma forma, o álcool pode oferecer alegria e euforia e, ao
mesmo tempo, causar uma infinidade de problemas à saúde de quem ingere álcool.
Adentrando às drogas consideradas ilícitas, a cocaína pode causar sensação de
autoconfiança e poder, mas pode também comprometer a saúde de quem cheira ou
injeta. Também a maconha pode relaxar e proporcionar viagens leves e lentas,
mas também pode causar mal à saúde de quem fuma. O ponto comum é que todas as
drogas podem causar a dependência e se tornar um problema para o usuário, seus
familiares e comunidade. No fim, o problema a ser enfrentado e discutido é por
que alguns usuários se tornam dependentes e problemáticos e outros não. Sendo
assim, como jamais conseguiremos acabar com as substâncias que alteram nossa
percepção sensorial, interessa muito mais entender a mente humana, as tragédias
pessoais e a desigualdade social do que proibir e criminalizar as drogas.
Pensando assim, fico a me perguntar, qual o
fundamento jurídico, legal, histórico, filosófico, moral, religioso ou de
qualquer outra natureza para considerar marginais e bandidos pessoas que usam
algum tipo de droga? E mais, também me pergunto, por que as drogas fabricadas
pela indústria capitalista, a exemplo do tabaco, álcool, ansiolíticos e
antidepressivos, são consideradas lícitas e, inexplicavelmente, as drogas que
não passam pela indústria capitalista são consideradas ilícitas, a exemplo da
maconha e cocaína? Será, por fim, que o detalhe em comum seja exatamente este:
a indústria capitalista?
Voltando ao começo, ontem fiz um churrasquinho em casa
e convidei os amigos para matar a saudade, jogar conversa fora, comentar os
jogos da Copa no Brasil e as consequências na campanha política, lembrar das
aventuras passadas, dos tempos difíceis, empanturrar de carnes e,
principalmente, tomar muitas cervejas. Abasteci o freezer com algumas caixas de
cerveja, preparei costelinhas de porco e carneiro com toque final de alecrim;
coração de frango, coxinhas da asa de frango, costela de boi ao forno com papel
alumínio, calabresa mista apimentada (uma delícia!) e, como não poderia deixar
de ser, saborosas picanhas com dois dedinhos de gordura. Na manhã seguinte,
como sou de carne e osso, tinha as mãos trêmulas, boca seca, dificuldade de
raciocinar e uma sede insaciável, ou seja, estava de ressaca.
Sei, por fim, que no mesmo domingo milhões de
pessoas fizeram a mesma coisa e outros milhões usaram drogas consideradas
ilícitas. Muitos, como eu, trabalharam normalmente no dia seguinte e outros,
não tenho dúvidas, por conta exatamente de sua relação com as drogas, continuaram
usando abusivamente e causando problemas à sua família e comunidade.
No mais, é muito provável que muitos policiais
militares, que poderiam estar presentes em algum churrasco e provavelmente
também de ressaca, resultado das cervejinhas do domingo, irão prender em
flagrante jovens pobres, negros, periféricos e excluídos com pequenas porções
de maconha ou crack, conduzindo-os a algum delegado, também de ressaca, que irá
indiciá-lo, mais pela cor da pelé e condição social, como traficante de drogas.
Em seguida, algum representante do Ministério Público, também participante do
churrasquinho do domingo, irá representar pela prisão preventiva com fundamento
puro e simples na “garantia da ordem pública” e, por fim, seu destino
será escrito indelevelmente como acusado por tráfico de drogas quando as mãos
trêmulas e boca sedenta de algum juiz de direito lhe decretar a prisão
preventiva e lhe esquecer na prisão.
Domingo que vem tem mais churrasco com os amigos,
muita cerveja e ressaca na segunda-feira, mas também terá muita galera fumando
maconha, cheirando cocaína e fumando pedras de crack. A diferença é que uns,
por conta da droga usada, cor da pelé e condição social, serão presos e
condenados e outros, enquanto cidadãos respeitáveis, tomarão um engov ou epocler
e assinarão mandados de prisão.
Publicado por Murilo
Wya Almeida
Publicado por Gerivaldo Neiva
Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito (Ba), membro da
Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos
Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil
do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).
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