
Existiria uma conexão entre as mortes trágicas? O que poderia haver entre a tortura e o assassinato de um pedreiro, no Rio de Janeiro, com tantas outras mortes? Aparentemente nenhuma. Amarildo era apenas um homem simples, vivendo numa favela carioca, sobrevivendo de “bicos e pescaria” e que, de alguma forma, incomodou todos os policiais da Unidade de Polícia Pacificadora – UPP, da Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro. Sua morte poderia passar despercebida do mundo, se tivesse sido perpetrada pelos traficantes como queriam fazer acreditar os Policiais acusados de tortura-lo e mata-lo. Agora, sua morte tem tudo a ver com todas as mortes perpetradas covardemente no Rio de Janeiro e no Brasil.
A narrativa, a seguir, se baseou em fatos apurados pela imprensa e pela Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Os últimos momentos de vida de Amarildo, da forma como foi exposta por mim, retratam, também, o que a polícia suspeita e investiga, não representando, ainda, a versão final do acontecido. No entanto, procurei ser o mais real possível nas narrativas da vida do Pedreiro Amarildo, e peço escusas à sua família por possíveis falhas com relação a nomes, lugares e datas.
AMARILDO
Amarildo, sujeito simples, estatura mediana, rijo, pele queimada pelo sol, dentes mal cuidados, sem cultura. Nasceu olhando o mar com o seu pai, na Praça XV. Menino de olhos grandes e brilhantes, segurando a mão da mãe, ficava olhando seu pai entrar no barco de pesca e sumir na imensidão de água. Algum tempo depois, viu o mesmo homem levantando um barraco no morro que se chamava Rocinha, onde os trabalhadores plantavam milho, mandioca e verduras. O lugar era mesmo cheio de rocinhas. Foi lá que os avós de Amarildo chegaram de Petrópolis e ajudaram a iniciar a comunidade, gente negra, descendente de escravos, pessoas que queriam uma nova vida, livre dos grilhões da escravidão, cheios de sonhos dentro da “cidade maravilhosa”.
Com o tempo, o menino Amarildo percebeu que o barraco onde morava era estreito e pouco para tanta gente: ele e mais onze irmãos. Mas, não faltava peixe, feijão, arroz, mandioca e fubá. Sua mãe foi trabalhar na casa de gente famosa. Esse trabalho ajudou a manter a numerosa família. Mas, não trouxe nenhum progresso para os seus membros. Amarildo lembra, apenas, que ela saía todos os dias, muito cedo, ia para o Bairro Leblon – bairro de gente rica - e só voltava quando a noite já havia tomado conta do morro.
AMARILDO POR AMARILDO
Meu pai... Lembro pouco dele, homem de raras palavras – de olhar penetrante e que significava muita coisa -, indo e vindo de barco, cheirando peixe, sumindo e voltando do mundão de água salgada. Minha mãe me levava na Praça, com o montão de irmãos, pra olhar o mar e ver o seu homem indo embora. Depois, ela comprava algodão doce e pipoca pra gente. Era uma festa só a volta pro morro, subindo pelas escadas feitas pelo vovô e seus amigos. Do alto eu via a cidade, eu olhava o mar, eu sonhava ser pescador. Era o ano de 1972.
Lembro-me de minha mãe, cansada, chegando em casa numa sexta-feira. Havia chovido durante o dia e fazia muito calor. A pobre mulher suava muito. Mesmo assim foi para a cozinha fazer a janta para os seus doze filhos. Meu pai chegou e ela rezingou, cozinhando peixe com mandioca. Não lhe deu confiança. Ele a olhou e perguntou:
---- O que foi mulher?
---- Nada! – Respondeu ela secamente.
---- Esse seu nada não é de nada, minha nega. Num me convence. Diz pra mim o que tá havendo?
Ela permaneceu em silêncio, foi colocando a comida nos pratos dos filhos e olhando cada um deles com ternura.
---- O que foi, mulher? – Insistiu nosso pai, com carinho.
A mulher, mãe de tantos filhos, soltou um muxoxo e respondeu:
---- A patroa... Quer um dos nossos pequenos pra ela criar. Onde já se viu! Filho que eu pari não sai do meu teto enquanto não virar homem ou mulher de verdade. É assim que é.
O pescador ficou em silêncio. Conhecia bem a fibra daquela mulher e se lembrou do dia em que a viu pela primeira vez na Praça XV de Novembro. Ele a admirou, faceira, olhando o mar e sorrindo pra ele. Ele chegou perto dela, meio sem jeito, e ela perguntou:
---- Você é pescador?
---- Sim. – Respondeu ele. – Por quê?
Ela riu.
---- Está fedendo peixe. Tem mais: se quer alguma coisa comigo, já sou mãe. Mas, não sou vagabunda.
Ele compreendia o orgulho dela. Eu não entendi muito bem o que estava havendo. Tinha apenas três anos de idade e tratei de comer com um prazer absoluto. Estava delicioso. Meu pai se acomodou num canto da cozinha, segurando uma cuia cheia do ensopado, comeu, se levantou, passou mão na cabeça de cada um dos filhos e foi para o quarto. Fui atrás dele em silêncio e fiquei olhando ele emendar a rede de pesca e amarrar nela os pedaços de chumbo. Era um trabalho de paciência, iluminado por uma lamparina, com os olhos quase grudados nos fios entrelaçados e presos em pequeninas amarrações.
---- Vem cá. – Ordenou ele com o braço esticado e gesticulando na minha direção.
---- Quer aprender a pescar?
Eu sacudi a cabeça timidamente dizendo que sim, olhando cabisbaixo para aquele homem com a pele negra brilhando sob a chama tremulante. Ele me parecia muito grande e poderoso. Era isso que ele era: um gigante dos mares.
---- Então, no domingo, vamos lá nas pedras do Arpoador.
Fiquei um pouco frustrado com aquela decisão do meu pai. Eu pensei que ia me levar com ele pro mar. Não. Ele apenas me levaria até as pedras que ficavam de frente pras praias. Acho que ele percebeu minha frustração, mandou que eu sentasse ao seu lado e disse:
---- O mar é traiçoeiro, menino. Você não pode ir comigo no barco. Não tem segurança pra uma criança. Quem sabe um dia eu tenha um barco maior e seguro.
No domingo, pela manhã, muito cedo, apenas com a luz da aurora iluminando os cantos do céu, eu e meu pai subimos até o alto do morro onde ele havia deixado algumas varas de bambu secando. Em poucos minutos ele me ensinou a transformar aquelas varas flexíveis e rijas em instrumentos eficientes de pesca, perpassando elas de leve e calmamente no fogo. Aprendi com os olhos. Muitos anos mais tarde eu arrumaria minhas varas lembrando aquele momento. Depois, voltamos para casa, onde Arildo, meu irmão de seis anos, nos esperava. Pegamos as mochilas e fomos pras bandas de Ipanema. Descemos do ônibus e seguimos pelas areias até as pedras do Arpoador.
No início era bonito ficar olhando meu pai preparar as iscas, pedacinhos de outros peixes, minhocas roliças, fatias de queijo azedo e pele de frango. Ele olhava pro mar e eu não conseguia separar os dois. Pareciam feitos da mesma matéria. Achei que aquele homem tinha sido parido nas águas daquele oceano que rebentava nas pedras, num vai-e-vem de espumas.
Ele subiu no alto das rochas escuras, sem camisa, o vento soprando forte na sua pele, e jogou a linha no mar.
---- Olhem bem! – Gritou ele lá do alto. – Venham pra cá!
Eu e Arildo subimos pelas pedras e ficamos ao seu lado. Ele nos viu e ordenou:
---- Levante a vara assim, jogue pra trás, atire a linha o mais longe que puder. Espera sem pressa. Os peixes vão morder. Aí é só puxar a linha de volta que o bicho vem, preso no anzol.
Ficamos durante a manhã de frente pra praia de Ipanema. Foi lá que, no colo daquele homem fascinante, fisguei minha primeira enchova. A ponta da vara se dobrou quase formando um meio círculo. Meu coração disparou e eu puxei a linha de uma vez. Meu pai riu muito. Sua gargalhada se misturou ao som do mar batendo nas rochas. Fiquei sem entender por que ele riu tanto. Mas o que importava entender suas risadas, se elas me faziam felizes?
Na hora do almoço, ele juntou os peixes que pegamos e foi com agente até um restaurante de frente com a praia, onde trocou tudo por três refeições. Fiquei decepcionado. Queria levar aqueles bichos pra casa. Ele explicou:
---- Levaremos pra casa o que pescarmos durante a tarde.
Depois do almoço voltamos pras pedras e ficamos de frente com a Praia do Diabo. Eu nunca soube a razão daquele nome feio para um lugar tão bonito. Mas, vá lá. Quem batizou o lugar devia ter lá suas razões pra escolhe o nome. De barriga cheia, eu e Arildo passamos parte da tarde brincando em vez de pescar. Corremos pela areia e desbravamos lugares entre as pedras por onde os repteis zanzavam em busca de alimentos. No final do dia, voltamos à pescaria e, no colo do meu pai, peguei ainda outras enchovas.
Chegamos em casa junto com a noite. Arildo, eu acho que não se ligava muito em pescaria. Meu pai, tratou ele mesmo de limpar os peixes e me chamou para eu ver mais esse ofício. Aprendi e, durante toda a minha vida, nunca gostei que limpassem os peixes que eu levava para casa.
Minha irmã mais velha, Eunice, lembro que ela não gostava muito das coisas que fazíamos. Olhava, de longe, toda a movimentação em volta dos peixes. Depois, saia às voltas com as coisas da vovó, aprendendo sobre umbanda. Minha mãe sempre falava:
---- Essa menina ainda vai montar um centro de umbanda pra ela.
Verdade. Ela levava jeito pra esse ofício. Já era uma moça, dançava bem, deixava o santo baixar nela nas comemorações do nosso povo. Quando eu digo nosso povo, quero dizer os que nasceram das mulheres que vieram, na marra, da África, foram feitas escravas e, um dia, mal libertadas, deixaram suas fazendas e formaram essas comunidades aqui no Rio de Janeiro, longe dos ricos, longe do luxo. Pois então, minha irmã estava aprendendo a jogar búzios. Achei aquele negócio até interessante. Era bonito ver ela sentada com uma peneira no colo, jogando pedras e conchas pro ar, catando uma a uma e predizendo o futuro das pessoas. Engraçado é que muitas vezes ela acertava. Ela não é filha do meu pai. Gosto dela assim mesmo. Quando meu pai se apaixonou pela minha mãe, já existia Eunice.
Numa quarta-feira do mês de outubro, acho que foi depois do dia 15, a noite já ia alta e meu pai não chegava. E eu meus irmãos já estávamos na cama e, por conta do nervosismo do atraso dele, ninguém conseguia dormir. Enfim, alguém bateu na porta do barraco e gritou pra abrir a porta. Era meu pai chegando carregado, com a perna toda enfaixada e gritando muito. Fiquei sabendo que o seu barco havia sofrido um acidente e parte da sua perna estava toda arrebentada. Fizeram o que podiam no hospital e mandaram ele pra casa. Foi assim que ele morreu, poucos dias depois, com uma das pernas apodrecida e gritando de dor. Minha mãe enterrou o marido e companheiro pescador numa cova qualquer do cemitério, olhou para os filhos e disse:
---- Droga de vida. Agora estou sozinha pra criar vocês todos. Mas, Deus proverá. Vou dar conta.
A lembrança do meu pai ficou meio embaçada na minha mente. Eu era muito pequeno quando ele se foi. O tempo foi passando, eu fiz onze anos. A Rocinha cresceu muito em pouco tempo, assim como todas as favelas desta cidade. Com isso, cresceu também os problemas. Muita gente ruim passou a viver entre nós, gente carregando espingardas, revólveres e vendendo drogas. Mas, minha mãe sempre nos dizia para ficar longe dessa gente e nunca brigar com eles.
---- Respeita eles. – dizia ela para os filhos. – Sorria pra eles, mas nunca aceite as merdas que eles vendem ou trabalhem pra eles.
Nossas casas ficavam todas pertinho uma das outras na Rocinha. Numa tarde de terça-feira, no mês de julho de 1981, não me lembro do dia certo, eu chegava da escola e vi muita fumaça perto de casa. Subi correndo e vi que o fogo se alastrava na casa dos meus tios. As pessoas gritavam que as crianças estavam lá.
---- Quem tá lá? – Perguntei, olhando pro barraco sendo consumido pelo fogo.
---- O Robinho e a irmã dele. – Escutei uma voz gritando atrás de mim
Robinho era apenas um garotinho, ainda de colo, e sua irmã, uma menina de oito anos. Não tive dúvida em tomar uma atitude. Entrei no barraco, fui até o quarto e vi o berço de Robinho em chamas. Enfrentei a fogueira e sai do barraco com Robinho no colo. Mas, quando tentei voltar pra salvar sua irmã, era tarde demais. Fiquei muito frustrado. Chorei durante o resto do dia. Robinho, no entanto, sofreu muitas queimaduras e precisou ficar muitos meses no hospital até se recuperar.
Bem... O tempo passa pra todo mundo. Eu não sou exceção. Cresci e descobri que precisava arranjar uma forma de ganhar dinheiro. Aprendi o ofício de pedreiro. Mas, cá no morro, é uma profissão pouco valorizada. Ninguém pode pagar bem. Mas, tem uma coisa que gosto muito de fazer e que me dá uma renda extra: pescar. Herdei essa vocação do meu velho, que Deus o tenha. Pena que não pude comprar um barco. Quem sabe, um dia... Quem sabe.
Como tempo anda mesmo e não espera ninguém, tornei-me um homem e, como fazia sempre, já com os meus dezoito anos, desci pra Ipanema num domingo de dezembro, de sol ardido e muito movimento. Eu só queria passear, vadiar, paquerar umas meninas pra ver no que dava. Quem sabe eu arrumava uma namorada pra dar uns beijos, uns agarros.
Ipanema, sempre bonita, parecia mais deslumbrante naquele dia. Cheia de gente bonita. Ipanema é famosa. Tem até música feita por um maestro famoso.
Foi, então, que vi Bete sentadinha num banco, quietinha, olhando de rabo de olho pra mim. Eu logo pensei que ela estava no papo. Não deu outra. Cheguei de mansinho, como quem não quer nada, igual gato. Alguém já viu gato quando quer carinho? Ele chega todo sem vergonha e se enrosca na gente. Fiz mais ou menos assim com a Bete. Ela ficou ali conversando comigo e me perguntando do que eu gostava. Falei das pescarias, do trabalho de pedreiro e do povo da Rocinha. Ela me contou que era do Rio Grande do Norte e que trabalhava em casa de família.
---- Minha mãe trabalha até hoje, também. – Disse eu pra que ela soubesse que trabalho de doméstica era labuta digna.
No final do dia nos despedimos já com um beijo comprido, daqueles de língua mesmo, um abraço apertado e pude sentir o calor do corpo dela. Não pensei duas vezes e lhe disse que queria namorar com ela. Ela aceitou e me falou:
---- Mas, fique sabendo que já tenho duas filhas que vieram comigo do Rio Grande.
---- Não faz mal. – respondi com um sorriso. Quando a gente se casar, a família já estará pronta.
E foi assim mesmo. Não demorou muito, eu levei ela lá pro morro, construí um puxado pra nós, perto da casa da minha mãe e tratei de trabalhar dobrado pra dar conforto pra minhas filha adotivas e minha mulher.
Nunca tive medo de trabalhar. Muito menos gosto de ver injustiça e gente sofrendo. É o meu jeito. Gosto de ajudar. Se Deus vê, ele me compensa e compensa as pessoas que eu gosto, os da minha família. Ganhei o apelido de Boi por causa desse meu jeito de topar qualquer serviço. Aqui na comunidade tem muita gente que precisa de ajuda, pessoas doentes, aleijadas, idosas que precisam ser carregadas pra passar pelas escadas até chegar onde os carros podem ir. Faço essa caridade com prazer.
Depois que a Bete foi morar no nosso puxado, minha família foi crescendo. O primeiro dos meus filhos a nascer foi o Anderson. Fiquei muito feliz com a vinda daquele menino que chegou todo enrugado e chorando muito. Os outros foram vindo conforme a vontade de Deus e Bete, sempre disposta, ia cuidando do nosso puxado, um único cômodo que nos servia de sala, quarto e cozinha. Mas, no final, dava tudo certo. Éramos uma família.
Nos domingos, eu descia sempre pra pescar lá pelas bandas de São Conrado. Ia sozinho pra ficar sossegado e concentrado. Levava minhas varas de bambu. Muitos pescadores, com os seus molinetes sofisticados, ficavam me olhando e alguns, eu acho, até criticavam. Eu queria que eles se danassem. No final do dia eu chegava em casa carregado de peixes graúdos.
Com o passar dos anos, a Rocinha foi ficando famosa por várias razões. Uma delas foi de que nela nasceram grandes criminosos. Escreveram livros, fizeram filmes e fundaram um monte de organizações para defender o nosso povo. Mas a guerra, de verdade, era pelo comando da comunidade. Os traficantes mandavam e desmandavam num vai e vem de chefes do tráfico. Eles disputavam a área e se matavam. Outras vezes, eram presos. Aí, se trocava o comando. Por mais que morressem chefes e soldados do tráfico, o crime continuava. Nós, moradores, víamos tudo isso e vivíamos nossas vidas, fazendo de conta que era tudo normal: normal os tiros; normal obedecer a bandidos; normal conviver com polícia corrupta e assassina.
Agora, traficante é assim: se você não quer trabalhar pra ele, tudo bem. Mas não se meta com ele, não atrapalhe o negócio dele, que é vender maconha, cocaína, armas e outras drogas pesadas. O que dói no coração da gente é ver os meninos sonhadores, que mal deixaram seus carrinhos de brinquedo, se tornando soldados dessa guerra maldita e morrendo assassinados, ora pela polícia, ora pelos próprios traficantes. O que acontece? Meninos não têm muito juízo. Às vezes aprontam, deixam de cumprir uma ordem, pagar uma dívida, esquecem do horário de explodir o foguete ou de empinar o papagaio. Não tem perdão. O chefe manda matar. Quando tem guerra pelo comando da área, são os meninos que vão dar tiro; e quando tem que enfrentar a polícia, são os meninos que vão pros becos com armas que nem conhecem direito. A polícia é treinada. Esses garotos não. Já cansei de ver meninos, filhos de amigos meus, serem mortos nesses becos. Dá dó, uma dó de cortar o coração, uma coisa que esvazia o estômago da gente e provoca ânsia de vômito.
Escutei, faz um tempo, que no Rio de Janeiro vai ter a copa do mundo e as olímpiadas. Penso que ser uma boa coisa pro Brasil. Mas tem tanta pobreza por ai que acho que nem tudo vai ser bonito. Depois que anunciaram essas coisas, o governo inventou a tal de Unidade de Polícia Pacificadora. O negócio é o seguinte: Primeiro, eles mandam o BOPE invadir a favela. Sobe o caveirão, policiais dando tiro pra tudo que é banda e os traficantes saem correndo. Traficante não é bobo, não. Sabe quando tem que fugir, dar um tempo, pra depois, voltar e ocupar o lugar que deixou
Depois que o BOPE faz a limpeza, o governo manda, pra tomar conta da gente, com o nome de UPP, os mesmos policiais que andavam fazendo besteiras pelas favelas; os mesmo que faziam acordo com os chefes do tráfico; os mesmos que enchiam a gente de medo. Dependendo dos policiais, eles metem mais medo na gente do que os traficantes. A Polícia, quando não presta, é um perigo. Ela pratica o crime usando a farda, nos carros do batalhão, e são unidos para nos matar.
Foi que aconteceu na Rocinha. Agora, aqui tem uma UPP. Eu sempre digo pros meus filhos ficarem longe dos policiais da UPP. Dá um frio na barriga da gente quando eles passam nas ruas e nos olham. Não sei explicar bem, mas acho que eles se sentem fortes, poderosos, vestidos nas suas fardas. Parece que eles gostam de humilhar a gente, fazer a gente sentir que não é nada na vida, uma titica de galinha.
Continuo com a minha vida. Meus problemas são grandes e preciso dar dignidade para a minha Bete e os meus filhos. Meu puxado está querendo cair. Comprei lajotas e vou reforçar ele. Depois, levanto um cômodo em cima dele. Ainda sonho com uma vida melhor pra todos. Parece difícil. Aqui na comunidade, os traficantes e os soldados do trafico aparecem menos. Mas todo mundo já voltou e o “negócio” tá funcionando de novo. A única diferença é que quem manda na área, agora, são os homens da UPP. Tem que tomar bênção deles. São os reis da área.
Hoje é domingo, dia 14 julho de 2013. Lembro o dia amanhecendo. Estava tudo bonito. Eu ainda sentia o corpo meio dolorido. Carreguei muitos sacos de areia no sábado pra ganhar um extra e vou comprar tudo em cimento na segunda. Resolvi descer o morro até o mar pra pescar. Peguei as varas, despedi de Bete, olhei para o Anderson dormindo e roncando, e ri. Pensei com o meus botões: “que bom que tenho uma família”. Afinal de contas, ninguém vive sem família. Deve ser muito ruim viver sozinho. Eu nunca vivi sem uma família, graças a Deus.
No caminho, escutei alguém gritando:
---- Boi, ó Boi! Vem cá!
Olhei pros lados e vi que me chamavam num barraco. Fui até lá e era pra carregar uma moradora doentinha e que precisava chegar bem depressa no carro que esperava bem longe na rua. Foi moleza pra eu carregar ela até o carro. Depois, no Bar do Júlio, fiquei sabendo que ela melhorou. Bom... Segui meu caminho e fiquei, lá nas pedras, olhando a praia de Ipanema com um bocado de gente. Não estava tão cheia por que o sol nem estava ardendo. Não pesquei muitos peixes, mas o que peguei, deu pro gasto. Voltei pra casa, limpei os bichos e sai pra dar umas voltas. Já estava de noite e fui pra birosca, no Beco do Cotó, papear. O pessoal do Bar do Júlio estava dizendo que os policiais da UPP estavam fazendo um arrastão. Pensei, então, que seria melhor eu ir embora pra casa fritar meus peixes pra evitar confusão. Saí de fininho quando já eram sete e vinte da noite. Mas, pra azar meu, dei de cara com quatro policiais. Conheço todos eles. O que tem o apelido de Cara de Macaco veio contra mim e enfiou a mão no meu bolso. Perguntei o que era e ele gritou comigo:
---- Cala a boca! Estamos procurando drogas e uma chave.
---- Você me conhece. – Respondi meio chateado. – Não mexo com essas coisas.
---- Cadê seus documentos? – Pergunto o Cara de Macaco me olhando nervoso.
Como eu havia ido até o centro da cidade, estava com meus documentos no bolso. Tirei todos eles e mostrei para o policial nervoso. Ele olhou uma vez, tornou a olhar meus documentos, fingiu que falava no rádio, olhou pra mim e disse:
---- Você vai com a gente, Boi.
Sem dar nenhuma explicação, eles me levaram até o Parque Ecológico onde funciona a sede da UPP. Mandaram que eu sentasse numa cadeira e ficaram me perguntando coisas sobre os traficantes e dizendo que eu estava aparecendo demais na comunidade. Eu me aborreci e reclamei:
---- Não podem fazer isso comigo. Vou reclamar contra vocês. Sou pobre, mas trabalhador e de bem.
Acho que o pessoal da comunidade avisou pra Bete que eu tinha sido levado pra sede da UPP. Ela foi até lá, me viu e perguntou o que estava acontecendo. Eu olhei pra ela e respondi:
---- Não sei, Bete. Meu documento está com o soldado Vital.
O comandante da UPP, Major Edson, foi até a porta e disse pra a Bete que ela podia ir embora que eu logo seria liberado.
---- Vou esperar. – Disse ela ao comandante.
---- A senhora não pode ficar. Se ficar, vai atrapalhar nosso trabalho e atrasar a liberação do seu marido.
Bete me olhou de novo, deu uma tragada no cigarro e desapareceu através dos becos. Levaram-me, então, pros fundos da UPP. Começaram a gritar comigo. Queriam que eu entregasse a chave de um paiol onde estariam escondidas armas de traficantes. Eu não entendia nada daquilo, não sabia de chave nenhuma. Jogaram água no meu corpo e pegaram dois fios elétricos desencapados e colocaram no meu pescoço. Nossa Senhora! Doeu muito e urinei nas calças. Pedi pelo amor de Deus que parassem. Mas, os policiais estavam loucos. Tiraram a minha roupa e fizeram coisas horríveis comigo. Quando eu já não tinha mias força pra nada, escutei o comandante dizer que não ia sair nada de mim. Eles jogaram meu corpo dentro da viatura, eu já sem forças, só pensando nos meus filhos, na minha Bete e nos meus irmãos. Lá em casa, eles deviam estar esperando eu chegar pra fritar os peixes.
O carro da UPP ficou rodando comigo até que parou num lugar. Não sei onde é. Agora, estou perguntando: “Meu Deus, o que vão fazer comigo”? Penso nos meus seis filhos, no meu sonho de sair pescando de barco pelo mar e nas minhas varas de bambu. Tento perceber o que os policiais falam e tudo está muito confuso. Estou com muito medo. Não consigo entender por que eles estão fazendo isso comigo. Nunca fiz mal pra ninguém pra merecer tamanha covardia. Sinto um toque na minha nuca, escuto um baralho ensurdecedor e adormeço lentamente, calmamente.
Texto de autoria de Pedro Paulo de Oliveira.
Todos os direitos reservados.
Reprodução somente com autorização do autor.
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